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Um anjo revestido de artesã

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Sentava-se ali todos os fins de tarde, apreciando a paisagem. Nela se incluíam pessoas, pássaros, animais e algo mais na direção do lago. Cuidara do pai durante quinze anos. Assim lhe pedira a mãe, um dia antes do fim. Três cães a rodeavam, deitados às vezes sobre seus pés.  Os lenços, na janela, iam e vinham ao sabor do vento e muitos paravam para os comprar. Gerânios e rosas; hibiscos e primaveras em pencas, escorados nos muros, deslumbravam a visão. _ Não tem segredo. Esterco de galinhas, água e amor e eles florescem agradecidos, ela dizia. 

O motorista do ônibus há algum tempo a contemplava. Uma de suas paradas era ali, a dez metros da morada da jovem. A casa ao lado, sem muro, permitia-lhe visualizar a silhueta da jovem de cabelos negros como o ébano e com o olhar compenetrado na direção do lago. _ O que será que tem do outro lado? Pensava Tarcísio, encantado com a jovem e com a delicada ramagem de suas roupas. Queria se aproximar, mas não a conhecia. Que nome ela teria? _ Bela, quem sabe. Aquela era uma das paradas mais demoradas, descendo e entrando pessoas. Ele não tinha pressa. Na saída olhava o retrovisor, com cuidado, virando-se depois na direção da jovem, esperando que neste momento os seus olhos se cruzassem. Num dia quente daquele outono criou coragem, desceu e lhe pediu água. Os cães silenciaram com o pedido da jovem, trazendo água fresca. Olhando-a, nos olhos, Tarcísio sentiu uma estranha paz e seus anseios arrefeceram. Sorriu agradecido e perguntou o seu nome. _ Isabela, o nome de minha avó. Mas me chamam de Bela, diz ela. _ Sou-lhe grato pela água Bela, diz o rapaz, admirado com um gato negro que surgiu na janela. Seria um presságio? Pensou. As pessoas estavam acomodadas no ônibus e ele retomou sua atividade. Os dias passavam e o amor pela jovem aumentava.  E todos os dias lá estava ela, sentada na mesma cadeira, acompanhada pelos cães e com um gato na janela. O inverno chegou rigoroso. Mas a jovem e os cães, cobertos de mantas de lã não abandonaram a paisagem. O jardim da jovem não mudava. Parecia primavera. Nas folgas Tarcísio passava em frente da casa de Isabela, mas apenas os cães e às vezes o gato se mostravam. Um dia uma senhora saía da casa da jovem com duas sacolas. Criou coragem e perguntou se por ali existia alguma costureira. _ Sim, vim justamente apanhar minhas encomendas. Mas Bela só faz roupas femininas. Descendo esta rua, no quinto quarteirão, à direita, tem uma boa alfaiataria, diz ela, despedindo-se. Com medo de que fosse visto, ele retornou a casa. Dias depois apareceu na casa da jovem para comprar lenços para a mãe. Atendido com solicitude comprou dois, de seda. O olhar da jovem acalmou de novo o seu coração. Promovido, Tarcísio se mudou de cidade, mas vinha amiúde visitar a mãe e sua Bela. Os meses se transformavam em anos e ali estava ela com o gato, um dos cães, já bem velhinho e outros novos. Tarcísio, grisalho e bem sucedido, passeava sempre com a mãe, idosa, passando em frente à casa de Isabela. Todas as vezes que por ali transitavam a mãe balbuciava: Nesta rua mora um anjo. _ Mamãe está envelhecendo, ele pensava. Era admirável ver Isabela ereta e conservada, no meio de cães e flores e sempre vestida com ramagens. Começou então a pensar que ela fazia parte de um mistério. Estacionou um dia o carro perto da casa da jovem, olhando atentamente para o lago. Os reflexos do sol do fim de tarde pairavam sobre a lagoa, como chamas na água. Era mágico. Tarcísio abria e fechava os olhos, procurando enxergar com o coração. Uma sensação de paz tomou conta de seu ser, a mesma que sentiu nos olhos de Isabela. Extasiou-se a seguir com a quantidade de anjos sobrevoando a lagoa. Lembrou-se da mãe com admiração – eis que ela estava certa sobre um querubim que vivia naquela rua - e sentiu saudades. Que bom que ainda a tinha, ele pensou. No início dessa noite a mãe receberia, das mãos de Tarcísio, um lindo buquê de rosas amarelas. Isabela, a partir de então, tornar-se-ia a mais preciosa de todas as lembranças no coração solitário de Tarcísio.

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